Abraçar a criança em mim





A sessão já tem um tempo e os lampejos de memória falham e/ou misturam-se. Recorro ao papel. O terapeuta pede-me que vá até à altura em que era uma criança feliz, logo após o relaxamento bem conseguido. E eu revejo-me pequena e com a idade aproximada de 7 anos alegre e despreocupada. Feliz, portanto. Um vestido branco e verde de primavera. Esta criança acredita em tudo. Gostava de ter visto contextos associados, mas não creio ou contaria. A imagem é esta, eu sorrindo, nos sorrisos primeiros, iniciais, sem máculas nem dores, antes do meu pai morrer, com certeza...
Perante sugestões dadas pelo terapeuta, sigo rumo a um momento problemático original, onde a despreocupação ou a inocência tivessem sido atingidas de alguma maneira. Ordena-me que procure responsabilidades ou que aponte o dedo. A quem apontaria o dedo? Onde está o culpado? Consegue fazê-lo? Encontrar o responsável? Pode descrever-me a cena?
Eis-me numa fábrica enorme, algures em Guimarães, uma fábrica de calças de ganga sport. Estou numa secção do tipo outlet, deduzo pela quantidade e diversidade de material e de pessoas a mexer nos artigos. A minha mãe está ali próxima de mim e dos meus dois irmãos. Deixa-nos à vontade pra mexer, escolher. A presença dele só incomoda quando ele fala. E não entendo como consegue ela gostar dele. Como consegue alguém gostar dele. Viscoso, prepotente, ditador, exigindo, controlando com o olhar, recriminando como se fosse Deus ou da polícia. É o companheiro da minha mãe, está connosco há uns 2 anos. Teria, talvez 34 ou 35 anos e eu já o achava velho e nojento. Talvez fossem ciúmes também, da pessoa que roubava a atenção da minha mãe, já que do pai tudo nos tinha sido roubado com a sua morte precoce. Eu tenho vestido uma camisola de lã branca que me pica na zona do pescoço e uma saia de lã verde-garrafa, a direito. Um collant de lã e uns sapatos de menina com atilhos de lado. Estaria tudo bem, se não fosse tão controlador e tão autoritário. Ele vem ter connosco porque deixou de ver a minha mãe e só porque algumas pessoas estão próximas a nós ele pergunta: a mãe? E a fúria tomou conta de mim, a revolta e nem sei se o meu irmão ainda se lembra deste episódio e da minha raiva. A mãe? Que mãe? Certamente, não a dele. A minha. E sabia porque dizia ele isso, porque desejava que todos pensassem que era o meu pai. Mas eu não permitia a substituição e nem a sugestão.
- Que mãe? A minha mãe?
Ele ficou furioso pela minha correção. Um pormenor sem qualquer importância, se ele não fosse o meu padrasto. Na volta a casa, lembro que quiseram passar em casa de amigos, mas eu zangada decidi ficar no carro e os meus irmãos imitaram-me. Foi nesse maldito fim de tarde que vi, pela primeira vez ratos e ratazanas. O carro tinha sido estacionado junto aos contentores do lixo, um deles deitado e nem a chuva afastou aqueles bichos horrendos. E eu não conseguia parar de olhar aquele espetáculo miserável e associar aqueles bichos feios ao meu padrasto. Era assim que o via.  Tinha nove, dez anos, não mais.
Outros culpados me surgiram e nunca eu. O meu pai, por se ter ausentado, por permitir que a morte o encerrasse no silêncio, por deixar cortar os laços, por não estar presente quando o chamei, implorando às estrelas resposta que nunca recebi. Culpada a morte de me ter roubado pilares e alicerces quando ainda nem sequer sabia o sinónimo de vida. A criança que eu era aprendeu a não confiar e a ter medo. A criança dos meus irmãos também. Não sei, realmente. Porque também o meu irmão se foi sem aviso prévio, ao completar onze anos. Também ele se foi e não partiu sozinho. Levou-me o avô dois meses antes. Culpada a morte, culpados os que desertam e abandonam. Aprender a estar só nunca aprendi. Nem a perder.
Um pouco mais à frente, o terapeuta conduz-me pra um momento de dor, de extrema dor, anos mais tarde, onde a criança que eu fui volta a mostrar medos e receios de perda. Espreito pelo buraco da fechadura, com trinta anos e vejo um corredor largo, comprido, cheio de gente que caminha nos abismos da humanidade.
De roupão de algodão grosso, aos quadrados, entre o castanho e o marinho, caminha lentamente, olhando o chão. O meu irmão! E uma dor fininha arranca-me ao desespero. Como se tivesse sido desenraizada! E sinto-me completamente abandonada.
O terapeuta, sentindo a minha aflição, ordena-me que vá ter a mais um momento feliz, onde a criança magoada pudesse ser confortada. E lá estou eu nas figueiras com a Claúdia, observando os frutos e as culturas, sob o olhar atento dela, na procura de ninhos. Sempre de sorriso aberto e franco, sempre com uma leveza de alma, eu vejo que a minha criança é igual a ela. Confiante em qualquer amanhã. Abraço a minha criança, sob sugestão do terapeuta, abraço-a e prometo estar com ela todos os dias um pouco. Prometo cuidar dela e ela de mim. E ela sou eu, a criança que acreditava ter perdido e só encontrado pontualmente nas fotos de infância. Sinto-me aliviada depois dos processos, das viagens, por outro lado, fica-me esta ideia: nunca vou entender a minha dificuldade em perder. Afinal, a vida é tantas vezes isso e todos vivem, perdendo e ganhando afetos. Porque guardo a ferro e fogo as perdas e, não liberto os meus fantasmas?

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