Escolhas de vida que nem a morte arranca!
A segurança induz ao relaxamento e talvez seja por isso mesmo que me facilito ao total relaxamento a que a terapeuta me conduz. A respiração tranquila, os músculos mais e mais relaxados, a sonolência só acontece ao corpo até ficar torpe e não se mexer durante horas. Duas, pelo que me foi dito pela terapeuta quando regressei da hipnose.
O sítio seguro eleito por mim, onde se vêm árvores de fruto, erva macia e um riacho que sussurra baixo as suas águas, logo após os meus pés, ao fundo deles posso ver a terra em sulcos farfalhudos e cheios de odor a fertilidade. O calor que me aquece o rosto e que me deixa prosseguir portão adentro até ao sopé daquele prado, onde por todo o lado se podem ver flores de todas as cores, aos tufos. Um homem sábio espera que o abrace e parto novamente, volto a passar no velho e forte portão de madeira que me leva ao prado reconfortante. E quando me dou conta, caminho por um enorme corredor, com portas de ambos os lados, com raios de luz a atravessá-lo na zona das frestas e pó. A terapeuta encoraja-me a abrir uma das portas (do lado direito, disse ela) e abro uma delas, do lado esquerdo. Encoraja-me a explorar o ambiente, a descrever o que vejo. Vejo, digo, um compartimento revestido a pedra nas paredes, com janela de entremeados da cor terra semelhante a ferro, mas não é ferro forjado e nem revestido com retorcidos ou arredondamentos. Um metal liso e de cor acastanhado com abertos e fechados e, atrás dessa janela de orifícios posso ver um rosto de um homem sereno, sentado de pernas estendidas com duas algemas nos pulsos. Os cabelos compridos, pela altura dos ombros, ondulados e limpos. Olha-me sem falar. Olho para o restante do cómodo e vejo um altar erguido com a parede do fundo a servir-lhe de fundo. Três pedras retangulares de tamanhos diferentes de forma ascendente e na pedra mais pequena uma cruz de cristo, talhada no mesmo metal daquela janela.
A terapeuta aconselha-me a questionar o homem sobre se tem alguma coisa a dizer-me. Uma mensagem. E procuro o seu rosto e vejo-o sorrir-me. Pergunto: quem é? Ele molha os lábios e responde-me: Não é importante quem sou visto não me conhecer. Mas digo-lhe que a liberdade é uma dádiva e nem todas as algemas do mundo podem aprisionar quem sou porque sou o que penso. E o meu pensamento é livre. E essa é toda a liberdade que necessito.
Não é um prisioneiro infeliz, deduzo pelas palavras acompanhadas da sua serenidade e do sorriso.
Volto ao altar e leio com as mãos as letras desenhadas na pedra abaixo da cruz: Abnisei, 1680 e tenho dezasseis anos. Chamo-me Natália.
A terapeuta continua a convidar-me a ir mais longe nessa vida, - que lição teve de aprender? Prossiga.
Prossigo e abro a porta e esta está cheia de móveis bonitos, onde a luz invade cada cortinado, cada cadeirão, cada flor, cada renda. Estou nessa sala, sentada junto da pianista, uma jovem mulher e eu tenho 28 anos e sou a Natália mais triste presente. Apesar dos risos abafados, das conversas e da boa disposição, sei que talvez seja a única a morrer por dentro. Talvez não fosse acontecer, mas agora posso senti-lo. Está a acontecer. A minha irmã mais nova, Ana, vai casar-se. E ficarei eu e António. Restaremos dois fantasmas da vida dos outros tomando parte. Nada mais que isso. Olho o António e sinto que sabe do meu desespero. Estará ele a sentir o mesmo? Ana entra na sala e apesar das lágrimas e sorrisos, sinto-a receosa. Penso que talvez seja eu a responsável por esse receio. Que o matrimónio afasta os laços familiares, que os quebra, como se tornasse o marido e a sua esposa pertença um do outro. E os fizesse deambular noutras esferas. Olho-a e sinto vontade de fugir. Fugir, correr para fora daquela sala e gritar que nada daquilo está a acontecer. Os meus pais faleceram, não há mais ninguém a quem Manuel pedir a mão de Ana, exceto a mim e a António. Olho-o. Quase ausente, não fosse na sua mão pender um copo e na sua boca um meio-sorriso de compreensão. Posso fugir, adivinho isso nos olhos do meu cúmplice, mas decido ficar e talvez tenha sido nessa escolha que cristalizei o coração, frio, gélido, longe do fio quente de sangue que aquece qualquer espaço onde existam humanos. Não me corre o sangue nas veias porque já estou a ajudar a Ana que chora a fazer as malas. Não choro. Sei que estou nervosa e inquieta, mas só se eu e Ana nos aquietássemos para conversar, se iria notar esta minha morte interna. Despeço-me dela como se fosse até já e esse até já durasse uma eternidade. Adivinho que é isso que acontecerá. Os dias tornam-se todos iguais, todos de chuva e névoa, e todos os que trazem sol só servem para me deixar saudosa. Ana teve duas crianças e raras vezes voltou e, quando voltava, no minuto seguinte já estava a fazer as malas de regresso, dizendo que os meninos perdiam as cores da face naquele marasmo. A minha irmã já não está mais, nem ali nem em parte nenhuma. A não ser nas minhas memórias. Só aí a tenho de volta. e choro, choro, porque me recordo daquele momento no salão, em que Manuel pede a sua mão na frente de todos os amigos presentes. E o tilintar dos cálices e os sorrisos e bons presságios são o anúncio dos meus dias de luto e de solidão.
A terapeuta ouve-me chorar e sente que o sofrimento me abala deitada na sua maca, e pede-me: continue, prossiga, vá até à sua morte, se for capaz e descubra que lição tem de aprender.
Estou numa cama imaculadamente imaculada, velha e inútil, cansada e António, mais velho que eu, aguarda que lhe responda e que reaja aos seus apontamentos. Estou doente. Muito doente e dali a alguns momentos tudo se finará para mim, até o António que desde sempre me acompanhou, todos aqueles babados, costuras, rendas e debruados, os pesados liteiros, o criado-de-mesa e toda a panóplia de coisas que só tem utilidade para os vivos. Eu já morri faz muito tempo e foi escolha minha não viver a alegria da Ana como se minha fosse. Nem abraçar os seus filhos como se meus sobrinhos fossem. E eram, mas nunca o fiz. A escolha de morrer quando Ana partiu para a sua nova jornada foi minha, só minha e das minhas tolices e receios. Achei que enchendo a Ana de medo do casamento, ela não fosse embora, mas quando ela se foi, foram com ela todos os sonhos, os meus, e porventura os dela, que também os tinha. Estou a morrer de tuberculose, mas esta era uma morte anunciada há tanto. Se tivesse tido a coragem de, no noivado, ter saído daquela sala e tivesse chorado o que tinha para chorar, talvez fazer a Ana entender deste meu medo de ficar sozinha, talvez ela tivesse estado mais presente. talvez eu tivesse sido mais feliz. Mas escolhi o medo de amar e juntei-lhe o medo de perder. Ninguém pode viver a perda de um amor que se não perde. Eu perdi porque decidi deixar de amar. Não escolho a morte branca, mas é ela que começa a encobrir todos os debruados do quarto e até o rosto sereno do meu tranquilo amigo.
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