Ana Hatherly, 1929


Príncipe

Era de noite quando eu bati á tua porta
e na escuridão da tua casa tu vieste abrir
e nao me conheceste.
Era de noite...
são mil e umas as noites
em que bato à tua porta
e tu vens abrir e não me reconheces
porque eu jamais bato à tua porta.

Contudo, quando eu bati à tua porta
e tu vieste abrir, os teus olhos de repente
viram-me pela primeira vez
como sempre, de cada vez é a primeira
a derradeira instância do momento de eu surgir
e tu veres-me.
Era de noite quando eu bati à tua porta
e tu vieste abrir-me e viste-me
como um náufrago sussurrando qualquer coisa
que ninguém compreendeu.
Mas era de noite e por isso
tu soubeste que era eu
e vieste abrir-te na escuridão de tua casa.
Ah era de noite e de súbito
tudo era apenas lábios  pálpebras
intumescências cobrindo o corpo de
flutuantes volteios de palpitações trémulas
adejando pelo rosto beijava os teus olhos por dentro.
Beijava os teus olhos pensados
beijava-te pensando e estendia a mão
sobre o meu pensamento
corria para ti
minha praia jamais alcançada
impossibilidade desejada
de apenas poder pensar-te.

São mil e umas as noites
em que não bato à tua porta e vens abrir-me. 

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