O paraíso

 



O Paraíso, segundo algumas pessoas

Ela ainda se lembra de arruaceiro e de galã que ele era. Era porque foi toda a vida até mirrar na doença e ser enfiado na caixa a sete palmos abaixo de terra, onde os bichos mendigam alimento. Lurdes tinha muitos irmãos, tantos que para saber o número certo, socorre-se sempre dos dedos cheios de peles finas, mãos bonitas para mulher da terra e, depois, vai fechando os olhos a cada nome de irmão conseguido, como se tal fosse esforço sobre-humano. É do cansaço da idade, talvez. Ela nega cansaço. Aponta apenas o coração que já foi segmentado e retificado duas vezes nesta vida. Toni era um homem aparatoso de bonito e vaidoso que só ela e Deus sabiam. Uns olhos verdes enormes num rosto amendoado. O moreno da pele devia-o ao campo e ás imensas horas de monda com o gado. A vida, ainda assim, tinha-lhe sido mãe e não madrasta, como muitos da sua geração lamuriam. Lurdes suspira quando fala dele. Está morto e isso não a entristece, de maneira nenhuma. Pois, está certo que se vive e se tem de morrer. Ficava-se pra semente? Ela não quer ser semente, já Toni desejava que a sua morte tivesse sido ao mesmo tempo ou após a morte dela. Não lhe tinha amor? Oh tinha e ímpetos de paixão, ainda com 70 e muitos anos e mais que tudo, posse. Esse sentimento de posse dele dera-lhe muitos desconfortos no matrimónio e ela desfiava-os todos, após a sua ida. Lurdes continua bonita e veste-se bem. Ainda toma o seu duche e se preocupa com o perfume e o colar, a echarpe e o sorriso. Esse tem-no a tiracolo sempre. E faz caminhadas, muitas, todos os dias, visitando os amigos e amigas que se mantiveram perto durante toda a vida. Pergunto-lhe: Tia, nem uma saudade bateu ainda dos queixumes do tio? Nada nadinha? -Nada! Vou-te contar uma coisa, rapariga. Ele era um chato, nestes últimos anos, aquando de ter ficado doente, e depois de vir do hospital. - Ela imita-o nos trejeitos e tenta fazê-lo na voz, pra que eu perceba - Ludres, Ludres, anda cá, oh Ludres, rai's te foda, mulher, anda cá que eu estou a chamar-te ou não?Que queres tu? perguntava-lhe eu, se ainda saí de perto de ti agorinha mesmo? E era isto o dia todo. Olha, ele pedia-me: Ludres, tu que rezas tanto, eu sei que Deus te ouve, pede-lhe Ludres, para morrermos no mesmo dia, de preferência no mesmo caixão!!! Eu desatava a rir e ela também, continuando: Mas ó homem, o caixão não dá pra dois. Será que nem depois de morta me vais deixar sossegada? Ele só pensava em coisar, e foi assim desde que casemos.... Um manfio é o que é! Depois lá voltava ele: - Ludres, já pediste a Deus nas tuas orações do que te falei? E eu nem lhe respondia. Se lhe dissesse, ele ainda passava mal. E nas minhas orações, eu pedi muitas vezes: Ou ele ou eu, que já não o posso aguentar mais! E se for ele a ir embora primeiro, nem que eu fique cá umas horas, só umas horas, só pra saber a que sabe o sossego dele se ir embora, a paz que sabor tem, que com ele nunca soube o que era. Tantos netos e bisnetos que tenho, que alegria! E tantos dias e meses se passaram e ainda nem acredito que afinal, mereci o paraíso. É isso, eu vivo no paraíso desde que ele se foi! E rimo-nos todos, os que ouvem e os que reouvem a história. Há quem viva à espera de um paraíso depois da morte, há quem o encontre na ausência dos outros.

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