Ainda nesse tempo primeiro





O terapeuta guiava-me no escuro, sem dúvida. Sentia calor enquanto as suas coordenadas me iam ditando caminhos. Seguia por aquele corredor, transpirada de apressar o passo e todas as portas me apareciam do lado esquerdo que, do lado direito, era apenas pedra centenária, aprumada e dura. As portas baixas e largas de madeira grossa com marcas visíveis de tempo. Uma portinhola pequena e sobranceira sem vidros e com grade larga. Uma argola pesada e negra pendia a meio da altura da porta. A dada altura parei e não sabia o que procurava. Entreabri a porta, sempre consciente da voz do meu guia que me ia colocando perguntas que ainda não podia responder: Onde está? Está alguém consigo? O que está a acontecer?
Do lado de dentro, a sala repousava numa luz suave, interna e na sala pequena estava uma mesa de dobradiças a meio, oval, comprida, ocupando quase todo o espaço. Na mesa estavam homens vestidos de franciscanos, umas vestes de cor terra de tecido semelhante á sarapilheira, porém, não tão grosseiro, todos com capuz na cabeça, talvez uns doze ou mais. E agora, no momento em que escrevo, tento visualizar a cena, pra me certificar que ainda estão lá, no meu inconsciente, imaculadamente sentados, em tom de oração, meditação, isolamento. Nas mãos de um deles, diagonalmente sentado para a porta, um terço antigo e pesado pendia para a mesa. Ergui o rosto das suas mãos para o seu rosto. Um rosto bonito, jovem, talvez uns 35 anos, sem rugas. Nele não sentia nenhuma posição posterior face aos outros. Eram todos iguais e todos iriam decidir sobre a sorte de alguém. Mais tarde, ainda naquela sala tranquila do gabinete, ainda com o terapeuta ao meu lado, senti que era da minha sorte que se tratava. Busquei, tal como me pediu o terapeuta, rostos conhecidos. Esse homem bonito e jovem era o meu marido. Nesta vida. Com o qual tenho tantos conflitos. Tentei ver os rostos acobertados pelo capuz dos que estavam frente á porta e, na primeira mirada, não reconheci nenhum. Na diagonal e de costas para a porta vi mais dois rostos conhecidos, um deles o meu filho, lá naquele tempo com 35 anos, não mais, que nesta vida ainda não completou 20. A seu lado e com o mesmo olhar cúmplice e decisivo, o Armando. O Armando, antigo colega meu de um curso de informática, realizado há tantos anos e com quem nunca mais me cruzei. Não era o mesmo rosto, mas era ele. O olhar desviava-se outra vez para o centro da mesa, onde continuavam cabisbaixos, ninguém se havia apercebido da minha presença. Não fechei a porta, mas desatei a correr, sem fôlego, como se dessa fuga dependesse a minha liberdade. O terapeuta dá-se conta da minha aflição e pede-me pra sair dali o que faço com atropelo e muita vontade. Logo mais sinto um par de braços que me atira para um espaço contiguo e quadricular. Onde existe terra no meio e alguns arbustos, ervas daninhas e aridez. Á volta do quadrado de terra antigo, muitos pilares que sustentam o edifício onde me encontro. Um convento? Oiço uma voz recorrente - em outros momentos e dias deste processo, sempre a mesma voz que me dizia o mesmo: a escolha foi tua, foi tua. E eu chorava e arremessava os meus fracos pulsos contra os joelhos escondidos pelas vestes que trajava, com raiva da voz que me encerrava naquele local contra a minha vontade. Não, a escolha não era minha, mas de outros. Estava prisioneira entre corredores e salas onde se retiravam chaves grotescas e capazes de terminar com todo o sofrimento e angústia, mas que escolhiam não o fazer.
O terapeuta ouviu-me chorar furiosa, não sei se gesticulava também. Continuou com sugestões claras e seguras. Onde está? Consegue reconhecer-se? É você? Quem está consigo? Olhe para os seus pés, que traz calçado? E as suas roupas como são? Consegue descrevê-las? Olhe para as suas mãos, como são elas? E a voz por detrás do meu guia, voltou a gritar: a escolha foi tua, a escolha foi tua. Parei de chorar, conduzindo toda aquela raiva para o jardim descuidado, para os sapatos pequenos e grosseiros, de fivela, rasteiros e gastos. Eram os meus pés debaixo deles. Confirmei isso batendo com eles contra o mocho de pedra onde estava sentada. Vestia umas roupas leves e compridas, escuras, sem cor definida. Não era falta de luz que não me deixava precisar a cor, visto que o espaço era bem iluminado por claraboia natural. Não havia teto a pender sobre o quadrado de terra descuidado. O sol era lume a incidir sobre as plantas sequiosas e sobre mim, momentaneamente protegida nos rebordos laterais do quadrado. A parede em frente era de um amarelo não catalogado e velho. Havia marcas claras de que o edifício era muito antigo e desaprumado, não havia cuidados de manutenção. Eu trazia uma espécie de colar contingente à farda no pescoço, o que me dava a sensação de sufoco. Olhei as minhas mãos pequenas e brancas, de dedos esguios e unhas quebradiças. Era eu e teria 14 anos. Um rosto branco e pequeno, uns olhos escuros e tristes, um cabelo longo escuro e encaracolado que naquele hábito me duplicava o calor. Era uma noviça? A sorte definida e sem escolha da minha parte, por outros, outros faziam com que a minha liberdade soubesse a amargura. Eu que tanto gostava de voar. O terapeuta perguntou-me se queria ir mais à frente nessa mesma vida, pra experimentar a minha morte. Não me lembro de lhe ter respondido, mas obedeci e depois do escuro e do piscar de olhos pra visualizar alguma coisa, vi-me a correr naquele maldito corredor, aflita e consciente que ali se confinava tudo, o eu, as escolhas, as descobertas. Sinto um objeto bater-me na cabeça enquanto corria. Olho de resvés e vejo apenas um braço coberto e um objeto retangular do tipo marreta a atirar-me contra o chão escuro e depois sinto um líquido gorduroso e quente a diluir o que restava das minhas lembranças. Uma sensação de mau estar quase boa, foi o que senti. E impotência.

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