Que sabemos do que somos?




Fui submetida a mais uma sessão de hipnose.

Fora do ambiente do gabinete, o calor era insuportável, mas lá dentro, ao contrário, estava fresco e, antes de iniciar a indução, usei a mantinha vermelha nas pernas. Sentia-me cansada, pela sinusite anunciada na hora do almoço. E precisava de relaxar. O que aconteceu rápido. A condução do terapeuta, sempre firme e segura ia aumentando o grau de relaxamento. Sem dúvida que o meu corpo aprecia imenso aquele adormecimento. Apenas a mente se encontra ali, totalmente desperta para a música de fundo, para o "agora", na indução cada vez mais aprofundada. O terapeuta faz sempre escolher o tempo, o local, o agora ou o antes. Senti dificuldade em respirar, desta vez. "Recue até um tempo á sua escolha, é capaz de se lembrar de todas as imagens mentais, de todas as vidas, de todas as vivências, de todas as causas". O meu tempo era cá nesta vida, recuando anos até á infância, primeiro com sete anos, depois com 4, depois com 27 anos e por fim, com 17 anos. A origem de uma relação problemática, de uma perturbação relacional. Origem. Tente tirar uma lição dessa aprendizagem. A lição, a mesma que o Resgatar da Sombra me mostrou já: a confiança perdida, o não-merecimento do amor, não posso amar, não posso confiar. Perder. Investir, confiar, apostar, perder. As pessoas são veículos e os sentimentos instrumentos. Algo confuso. Lição de aprendizagem: Saber perdoar? Aprender a perdoar. Volto ao momento em que tento explicar ao meu filho o corte relacional com o pai, a separação, o desvinculo, ora com 12 anos dele, ora com 18, em vão. Só a maturidade lhe trará compreensão e distanciamento da mágoa pra poder entender. Mas dói-me a dor dele e a minha impotência. Desisto de o fazer entender e dói-me tanto. Eu própria não entendo. Eu que pensava que o amor tinha a forma imaculada e permanentemente vitalícia de um coração uno inquebrável, doces e enfadonhas fantasias de menina. O príncipe encantado só existe nos contos de fadas, isso eu aprendi às minhas custas, aquando do desinvestimento relacional. O amor fica, mas os sonhos desistem, os personagens mudam, o cenário altera-se e a mágoa pode tornar-se uma sombra presente em todas e quaisquer relações seguintes. Choro como se tudo estivesse a acontecer agora, mas estou na cave de minha casa, encostada, só encostada no sofá de canto, como se tivesse receio que se me recostasse, ele pudesse engolir-me. É terrível a convivência connosco nos locais escuros, escolhidos a dedo pra introspeção. Acontece-me ainda hoje essa escolha nos cenários. Acontece-me também e ainda o medo do passado. Ali, naquela cave, olhando os instrumentos musicais, os microfones e fios e colunas e bateria e guitarras ordenadamente distribuídos no espaço, instrumentos com os quais convivi sempre e dos quais cortava elos a partir de então, ali, na escuridão onde conhecia de cor os objetos e a sua disposição costumeira, desisti de explicar fosse o que fosse ao Rui e a mim. Não era um tempo perdido. Era um elo em transição e um desespero ao qual não podia ver o fim.
O terapeuta arrastou-me dali com alguma rudeza nas palavras. Lugar seguro. Obedeci prontamente.
E dou por mim, garota de 5 anos, magra e morena, de vestidinho fino de algodão com desenhos azulados e um casaquito de malha (e acrílico) que me picava. Talvez fosse início de primavera em que o início de dia é fresco ainda e começa a aquecer por volta da hora de almoço. E devia ser domingo, pois brincava no jardim do adro de uma capela toda ela relvada e sofrendo uma inclinação. procurávamos ovinhos, eu e mais duas crianças, um rapaz e uma rapariga sensivelmente da minha idade. Olhávamos volta e meia para a entrada da capela onde se realizava a missa e onde todos se apinhavam no espaço exíguo pra não perderem o sermão do padre. E não demorou nada a ver a multidão de crentes espalhando-se pelo cenário em volta, saídos dos serviços religiosos. A minha mãe de cabelos compridos pelos ombros, lisos e algo escorridos, de uma pele clara e olheiras profundas mostrava um sorriso forçado a quem passava por ela, despedindo-se pra voltar à sua vida de tristeza assumida. Um vestido fino e barato, mas bonito, algo esverdeado com o mesmo casaco de malha igual ao meu, mas liso, sem drapeados, uma espécie de sandália baixa quase chinelo. Chegou perto de mim e agarrou-me pela mão, sacudindo-a. Não se zangava comigo. Era raro. Lá me levou pelo relvado fora até chegar à estradona de terra que nos levaria à nossa humilde casa. A porta da rua ficava voltada para a casa ao lado e tinha uma varanda baixinha onde se multiplicavam plantas e mais plantas e bancos de madeira rasteiros e sementes em frasquinhos. A janela da cozinha e da entrada da sala estavam abertas, puxadas pra cima com a tranca. A máquina de costura estava quieta. A cozinha era pequena, mas chegava e sobrava pra duas. Éramos duas. O pai tinha morrido na guerra. Eu já nem me lembrava do rosto quanto mais da dor de não ter pai. Estava habituada áquilo e nunca me tinha habituado à tristeza da mãe. Os olhos sempre inchados. Ainda era nova. E quando se arranjava ficava bonita. A mãe era costureira. Eu sempre pensara que com o evoluir dos dias a mãe iria aprender a rir, forçada pelo tempo e até pelos risos de educação que a mãe dava aos outros pra não os preocupar. Mas éramos só as duas. E só esquecia a tristeza dela quando brincava com os meninos na rua ou quando entretida a brincar sozinha, num mundo totalmente imaginado por mim, onde os olhares vazios não existiam.
O terapeuta estava ali a pedir-me descrições, nomes e ocorrências.
A mãe serviu-me o almoço de pé no balcão e eu sentada na cadeira enorme, sabendo que ia comer sozinha. Ela beliscava uma maçã e corria prás plantas e depois prá máquina de costura. Rituais que sabia de cor. O terapeuta pediu-me pra ir mais á frente, tentar ver mais longe. Assim fiz. Estava sozinha numa cama, a cama da minha mãe, de paredes branco creme, até meio das paredes papel pintado com madressilvas e depois todo aquele branco a oferecer a paz da eternidade. Vi rosas no teto que pendiam do candeeiro. E chorava lágrimas gordas, desesperada, desamparada e só. Nunca me sentira tão só. Até a tristeza da mãe, aquele peso que eu carregava como um fardo às costas me fazia mais companhia que todo aquele silêncio. O meu choro abafava o mundo tal a intensidade da dor. A mãe partira, com comprimidos. Tanto tinha pedido paz que conseguira. O terapeuta, mais uma vez, me arrancou dali. Mais á frente, saber o que tinha se passado, qual a lição a aprender. Vi-me no jardim da minha infância, agora com 40 anos, sem o casaco que a mãe me obrigava a vestir ao domingo. O relvado igual, as árvores maiores e mais antigas e a minha dor absolutamente maior do que a da minha infância (que era a dor dela que eu carregava sem prazer). O que aprendera? Que casar e ter filhos só acarretaria dor. Que trazer filhos incapazes de carregar a tristeza dos pais era inadmissível. Senti-me o espelho dela, com a exceção de não ter filhos a quem entregar o vazio da minha vida. Era costureira como ela, sozinha como ela. Triste como ela. Já não sentia desespero, mas uma apatia sem retornos e sem reversos. E ninguém poderia preencher mais a minha solidão do que eu própria quando lembrava os olhos dela inchados de tanto chorar.
Saí dali e entrei num tempo de torres. Maiores do que a Eiffel em pleno deserto americano.

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