Repleta de dúvidas






A (in)consciência é um órgão. E hei de dizê-lo e continuar a pensar que quase nada sabemos da sua forma de proceder e organizar, de sintetizar e desligar.
Aquela sala bem conhecida onde me encontrava permitia a mim e ao guia continuar a ir mais longe. E antes que tal aconteça, antes mesmo da indução ao relaxamento, pergunto-me quão longe conseguiríamos ir se não fizéssemos resistência. A resistência, não mais é, do que o medo do desconhecido, a racionalização das coisas, o apego ao materialismo e às convenções, ou não?
Antes mesmo da indução ir a meio, já eu estava totalmente relaxada. Um corpo pesado e inerte, pendendo pro abismo da minha consciência. Bem posso afirmá-lo, após mais esta regressão concluída.
Ergo o antebraço até á fronte, onde os cabelos finos e maltratados se colavam na testa, inundada de suor. A gordura não me permitia mexer muito, nem o calor ou a disposição dos trajes, na verdade tudo se resumia a obstáculos. A sede era a minha doença maior.
Onde está? Reconhece alguém? Reconhece-se? Pode descrever-me o que vê, o que sente, o que veste? A voz conhecida que pretendia respostas continuava a colocar questões para as quais ainda não se abriam respostas. Tinha sede. Á minha frente, o horizonte surgia minimizado pelos cereais e por nesgas de céu que se embaciavam pelo calor horrível. Por entre os cereais, eu adivinhava o rio, já combalido do verão penoso, de margens estreitadas e quase secas, relativamente a anos anteriores. Não me era permitido erguer o corpo para avistar em volta e menos ainda ir naturalmente até á fonte que mataria toda aquela sede, que já era sofrimento. Penso agora no ditado da preguiça que morreu á sede nas margens de um rio caudaloso e fértil. Este era o oposto do ditado. Estava impedida de chegar ao rio, correndo o risco de atentar contra a minha própria vida. O feitor haveria de me martirizar, de me molestar, se o fizesse. O meu corpo contaria já com 6o e muitos anos (não me era possível precisar, talvez fosse uma analfabeta). Cabelos compridos, escuros e levemente ondulados, de risca ao meio, finos e eriçados pela falta de pente, de lavagem e pelo suor constante, de sol a sol. Trabalhava de cócaras, com uma saia de plisses, gasta que fora outrora de alguém mais abastado em termos de posse e de gordura. Nem era cinzenta, nem preta nem branca, era já desbotada, sem cor alguma. Encardida, tanto como as minhas unhas largas e com uns dois centímetros de altura. Carregadas de terra e de restos de cereais e lixo, de me coçar no pescoço, de me limpar, sem saber o que se faz connosco, quando nada podemos fazer. Mais do que existir, sobrevivendo.
Outros como eu, acocorados e de raça negra mantinham-se na mesma ocupação, almejando aquele rio. E se todos pudéssemos satisfazer tal vontade, beberíamos aquele rio todo e nada sobraria, nem líquenes, nem lodo, nem pedrinhas de areia fina, nem folhas de arbustos rasteiros que era tudo o que havia. Não sei se os cereais eram café, se cevada, aveia, se outros. Eram altos e verdes, esguios. Cheiravam bem e tínhamos de batê-los com uma espécie de retângulo, com duas pontas abrasivas nas extremidades, com que segurávamos o mesmo. Eu fazia-o e de cada vez que descansava, sentia o suor a escorrer-me pelas coxas abaixo, desconfortável, semelhante á urina. Também as necessidades eram feitas assim, naquela mesma posição. Quando descansávamos? Se calhar á noite, mas era escravatura, disso não tinha qualquer dúvida. Não me perguntei o nome, tinha que ser um nome curto, grosseiro e fácil de ser entendido. E como eu era aquela, seria natural ter o nome e não o perguntar a mim mesma. Ou até nem ter nome. De uma das vezes que tentei erguer-me e atrever-me no alcance desse rio que já se tinha transformado numa visão celestina, fui deitada ao chão por uma perna enorme e grosseira, de traje grosso e sujo. Tão sujo como a sua profissão. Um corretivo por me levantar, obedecendo ás minhas necessidades básicas. Se continuo sem beber, morro. O feitor tinha um rosto jovem e agressivo. E rude. Sem ponta de compaixão ou amizade. Nós éramos bichos, pra ele, bichos de trabalho. Exercia sobre nós todo o tipo de moléstias e agressões. Era mais uma vez o meu marido desta vida. Esmagava a bota do seu pé contra a minha carne branca, escoiceando as pernas como se fossem chãos que precisava se regularizar. Gritei, chorei de dor, creio que sem nunca sair um som, tal o medo das represálias serem maiores. Mas as lágrimas eram reais dentro da sala onde terapeuta e eu nos mantínhamos conscientes, um do outro e sobretudo eu de imagens que podiam bem ser filmes já vistos ou sugestões inconscientemente guardadas de sentimentos despertados. Sim, tudo podia ser ficção e eu estar a ver desperdiçados os meus dotes de realizadora cinematográfica. A dor manteve-se ali, realmente, ainda hoje sinto uma dor fina junto ao osso da anca e do fémur. Pedi, entre soluços, que o terapeuta me levasse dali, pra um sítio seguro, onde nada me pudesse fazer mal, onde a minha sede se evaporasse ou fosse suprida. Tal aconteceu. Se tivesse de localizar geograficamente aquele sítio, diria que estava na Argentina, no Chile, em San Salvador, ou Brasil. E não conheço estas partes do mundo. Poderia ser Cuba, estive em Cuba. Não sei. Tenho só a sensação das coordenadas e nunca a certeza de coisa nenhuma. Dúvidas que se manterão ou que me abandonarão pela falta de como alimentar esta teia de imagens, onde encontro sempre pessoas desta vida com as quais tenho enormes conflitos. Caso do meu marido e do meu filho mais velho. Loucura? Será com certeza, pois logo a seguir encontro-me na pele de um homem baixo, medonho, esguio de fome, com sobrancelhas espessas e unidas, negras de sujo e de génese, sobrancelhas essas, onde sinto comichão - poder-se á ter carrapatos ou piolhos nas mesmas? - e medo da pressão. A pressão de outros que me empurram pró abismo. O abismo começa com pó no ar, de uma terra árida e seca, vermelha, duas lâminas de ferro abrem-se, ouvem-se gritos de multidão lá fora desses portões e vejo animais, touros e forcados luxuosamente trajados, e as minhas vestes são de miserável, bermuda até ao joelho suja e fedida, abaixo dos joelhos um manto de pelos grossos e negros, besuntados daquela poeira e de sujidade de semanas e uns chanatos do tipo folclore igualmente gastas. A cor escondida pelo pó. Nos meus olhos há medo, um medo superior a tudo, como se a morte estivesse á minha espera, para ser festejada pelos gritos que eu ouvia e não entendia. Senti que ia render aqueles ricos forcados, como se eu fosse uma espécie de recompensa pela bravura dos animais.
Continuavam a empurrar-me pelas costas e nem me atrevia a olhar tal era o medo, mas eram muitos braços. Aqui estava o destino do homem que era eu, assegurar que o fim daqueles espetáculos hediondos não manchasse sangue nas vestes de lantejoulas e cetins. Sozinho e sem escolha. As dúvidas multiplicam-se á medida que o corpo vai recobrando do adormecimento e o terapeuta pede-me tempo. Procure dentro de si respostas. E se não as encontrar, ainda, deixe aberto o canal, às vezes vêm como sinais. Acontecem sem que esteja á espera. E creio que, fará prova disso o passeio não planeado a Verín, a um castelo de Monterrey, palco de guerras de outros tempos, onde os espaços religiosos pertenciam a ordens franciscanas. E de lá colho imagens e referências de Santiago de Compostela. De onde origina a minha família paterna - a minha avó. Posso dizer-vos que a minha cabeça continua a matutar nestas vidas que nunca vi em filmes, que posso muito bem ter construído ao longo dos anos e que podem, ainda, ser fantasmas de outros tempos, memórias gnósticas de uma alma antiga, sem maior consciência do que esta. A de saber que o tempo é um organizador construído por nós que justifica os espaços e as epopeias, numa tentativa de entender a vida.

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